sexta-feira, 8 de abril de 2011

Consumo no mundo virtual: seremos salvos do fim?

* Por Getúlio Reale

Atenção! A solução para o maior mal do planeta, o consumo, surgiu de forma espontânea com a Era Digital: o consumo virtual no ciberespaço nos salvará da catástrofe! A Migração em Massa para o Ciberespaço, sobre a qual já escrevi, fará com que grande parte do consumo de bens materiais seja substituída pelo consumo de bens virtuais, livrando a terra do desastre inevitável que o consumismo está causando! Milhões (ou bilhões?) de pessoas em jogos virtuais, Facebook e Twitter estão passando a satisfazer diversas de suas necessidades e desejos sem precisar se deslocar com carro, ônibus, comprar presentes, brinquedos, roupa, revelar fotos ou ir a um bar, sem esse tipo de consumo que gera detritos e poluição!

A ideia acima deve mexer com o coração de muitas pessoas, em especial ecologistas que sejam entusiastas ou não opositores da internet. Inclusive, o conceito de substituição de consumo real por virtual tem surgido nos meios acadêmicos, como o trabalho de Lin (1) (“Virtual Consumption: A Second Life for Earth?”). Para a maioria das pessoas, a questão do consumo como um mal passa como óbvia e natural. Mas seria o consumo o verdadeiro mal do mundo? Ou será a visão dogmática sobre o consumo um mal ainda maior para as pessoas de nosso planeta?

Não há dúvida de que o volume gigantesco do consumo em muitos lugares causa problemas sérios para o meio ambiente. E não há dúvida de que se deve ter uma visão crítica e realista sobre a forma como os recursos da terra estão sendo usados e sobre as consequências que o todo o lixo gerado trará para o equilíbrio do ecossistema e a sobrevivência das gerações futuras. Isso torna legítima a especulação acerca das possíveis soluções para problemas reais, como, por exemplo, a redução do consumo pelo ainda estranho caminho do consumo nos mundos virtuais.

Mas o que não é razoável é demonizar o consumo como o grande mal da humanidade, como um aspecto de nossa cultura que precisa ser radicalmente alterado ou extirpado – como é corrente em muitos setores de nossa sociedade. Mais uma vez, uma visão realista, não dogmática, sobre o consumo deveria começar sensibilizar as pessoas, para que o parágrafo inicial passe, digamos assim, a “arder no ouvido”.

Pensemos, por exemplo, nos países africanos. O aumento do consumo seria bom ou ruim para as pessoas? Uma visão muito interessante é a do antropólogo da University College of London Daniel Miller (2). Para ele, a solução da maior parte das mazelas humanas provavelmente passa por mais consumo, não por menos, pois tais mazelas estão fundadas na falta de bens como remédios, habitação, transporte, livros e computadores. O autor, falando sobre esse tipo predominante de visão sobre o consumo, afirma que “a crítica ao consumo tende a ser tanto uma forma de autonegação – ignorando o grau em que esses mesmo escritores aparentam favorecer nas suas vidas privadas o que eles refutam em sua escrita – quanto uma negação da condição de pobreza como uma causa originária do sofrimento humano” (p.38).

Esses mesmos críticos tendem a acreditar que o consumo é um fenômeno criado pelo capitalismo moderno, que “perverteu as almas” para tirá-las de um estado de paz e harmonia com a natureza e as demais pessoas (mito do bom selvagem), para levá-las a uma vida supérflua e sem sentido. Para Miller, o consumo não é um fenômeno ligado exclusivamente à modernidade, mas acontece desde sempre. Muitos arqueólogos que têm estudado o assunto mostram isso. Além do mais, estudos indicam que, na Grécia antiga, o consumo, entendido de forma ampla, teve papel central no entendimento de questões fundamentais como o significado da democracia e o lugar da filosofia e de outras questões culturais como elementos do processo político emergente.

Tanto as discussões iniciais quanto as contemporâneas sobre o consumo tendem a condenar a porção do consumo que é feita além de um padrão moral qualquer de necessidade. Segundo essa visão, o mundo moderno é caracterizado como um “circuito sem fim de signos supérfluos levando a uma existência pós-moderna superficial” (p.37). Para Miller, a tendência de ver o consumo sob essa perspectiva é surpreendente, pois o fato de populações inteiras se terem identificado por meio do consumo, ao invés da produção, poderia ser visto como progresso, não retrocesso. Em suas palavras, “nós poderíamos ter apreciado uma mudança da identidade enquanto fundada em algo que a maioria das pessoas faz por um salário e sob pressão, para encontrá-la em um processo sobre o qual elas têm muito mais controle. Nós poderíamos ter argumentado que o capitalismo tem muito mais controle direto sobre as identidades das pessoas enquanto (sic) trabalhadoras do que enquanto (sic) consumidores” (p. 38).

Na verdade, como mostra Miller em seu livro “Teoria das Compras”(3), bens de consumo geralmente servem como mediadores de sentimentos humanos. Uma mãe, quando escolhe comprar os ingredientes para fazer um bolo ou um pó pronto, transcende a decisão racional de “fazer bolo”, para na verdade materializar o quanto de cuidado, carinho e atenção quer dar à sua família, por exemplo – bens de consumo como meios para a realização e cultivo de relações e sentimentos humanos nada “materiais”, no sentido comum.

Portanto, seja ou não a migração em massa para os mundos virtuais uma solução para os problemas que o consumo pode gerar, um passo mais importante para que mudanças necessárias aconteçam, em direção a um mundo melhor, passa antes pela derrubada do mito, do dogma do consumo como um mal em si.

*Administrador e Associado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)
** Texto publicado na 86ª edição da Revista Leader

1. LIN Albert C.Virtual Consumption: A Second Life for Earth? Brigham Young University Law Review. 2008.
2. MILLER, Daniel. Consumo como Cultura Material. Horizontes Antropológicos. Vol. 13 (28). 2007
3. MILLER, Daniel. Teorias das Compras. Nobel. São Paulo, 2002


Fonte: http://www.forumdaliberdade.com.br/fl24/consumo-no-mundo-virtual-seremos-salvos-do-fim/

Foto: Evandro Veiga/CORREIO - http://www.correio24horas.com.br/fileadmin/user_upload/tt_news/pics/internet_01.jpg